quinta-feira, abril 24, 2003



Inacabados

De todos os pecados capitais, a preguiça me persegue. Mas é uma perseguição lenta, que vai chegando devagar, sem pressa, e aos poucos vai tomando conta do ambiente.
Por culpa da indolência, deixei inacabados diversos projetos.

Um dia resolvi ser poeta. Essa decisão surgiu do nada, como todas as grandes decisões. Acordei naquele dia cheirando poesia. Tudo era motivo para inspiração. E decidi: vou parir poesia e sair pelas ruas declamando.
Durante toda a tarde que se seguia, as rimas e as palavras brotavam como mágica. Ao voltar para o meu leito, arrisquei inseri-las em papéis, para serem contempladas na posteridade.
Mas eu havia perdido a poesia. E na gaveta da cômoda do quarto, os papéis, como folhas ao vento, levaram o sonho de ser poeta para o esquecimento.

Resolvi dormir, pois os sonhos nos inspiram. Mas o sono anda lado-a-lado com a preguiça, e quando fui abatido pelo sono, ao invés de inspiração, apenas consegui descanso.
Quando acordei, o devaneio de ser poeta sofreu uma transformação: queria ser músico.
A música é a poesia entoada pelos anjos. Letra e música se misturam, para sincronizar corpo e alma na vibração do som. Resolvi aprender a tocar violino, violão, violoncelo. Compor, cantar, tocar.

Porém passado a euforia, foi embora toda cantoria. Foi me dando uma preguiça e o sono de novo me abateu.
E ao acordar novamente, o pôr do sol visto pela janela, apontava uma paisagem digna de uma pintura. Levantei depressa para contemplar. E numa súbita idéia, resolvi: serei pintor.
Pintaria quadros com paisagens, as mais belas que a natureza pudesse me mostrar. A alvorada, o anoitecer, a madrugada, as ladeiras, as lareiras, as cachoeiras, estariam todas registradas em pincéis e cores.
Enquanto pensava, o sol se pôs e a noite escondeu as cores do quadro. E novamente a lassidão bateu na minha porta.

Noutro dia resolvi ser escritor. E através da escrita, descrever todos os meus sonhos: o sonho de ser poeta, de ser músico, de ser pintor e até mesmo de ser escritor. Mas novamente a preguiça me abateu.

E assim como as poesias, as músicas e as pinturas inacabadas, esse texto teria um final diferente, não fosse o sono e a preguiça.